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sábado, 30 de abril de 2011

A Religião sob um outro olhar


A religião tornou-se um tabu nas organizações. Não a discutimos por respeito sagrado às pessoas e por respeito ao sagrado. Porém, por medo de discuti-la, aceitamos muitas excessos e irracionalidades. O filósofo alemão, Ludwig Feuerbach, já em 1841, ousou por um pouco de racionalidade na discussão sobre a religião e deu muito o que falar, até hoje.

A RELIGIÃO SOB UM OUTRO OLHAR:
Comentário sobre o livro A Essência do Cristianismo” de Ludwig Feuerbach.
Por José Ricardo Martins

“O solene desvelar dos tesouros ocultos do homem, a revelação de seus pensamentos íntimos, , a confissão pública de seus segredos de amor.”
“Como forem os pensamentos e a disposições do homem, assim será o seu Deus; quanto valor tiver um homem, exatamente isto e não mais, será o valor de seu Deus. Consciência de Deus é autoconsciência, conhecimento de Deus é autoconhecimento”.
“Deus é a mais alta subjetividade do homem, abstraída de si mesmo.”
“Este é o mistério da religião: o homem projeta o seu ser na objetividade e então se transforma a si mesmo num objeto face a esta imagem de si mesmo, assim convertida em sujeito.”
(Trechos de “A Essência do Cristianismo” de L. Feuerbach)

1. Introdução
Este artigo tenta expor as principais idéias do filósofo alemão Ludwig Feuerbach a respeito da religião. A religião, especialmente o cristianismo, foi o centro da atividade intelectual e da “perdição” do ousado filósofo que rompeu com o pensamento de seu mestre Hegel e transformou a religião num fenômeno antropológico, expressão da natureza humana.
Considera a religião a essência imediata do ser humano, acreditando assim poder explicitar os "tesouros escondidos no homem". Reduz atributos divinos da teologia a atributos humanos da antropologia. Sua filosofia procura transformar a teologia de Hegel em uma antropologia baseada no mesmo princípio, a unidade do limite e do infinito. Compondo a esquerda hegeliana, Feuerbach defende a idéia de que para Hegel a religião não é razão, e sim representação, sendo então redutível ao mito. Esta facção, em um primeiro momento, faz uso das idéias hegelianas dirigindo-as contra a teologia e a filosofia tradicional. Em uma segunda etapa, acaba por criticar as abstrações hegelianas em defesa do homem concreto, e a fé cristã em defesa de uma metafísica imanentista. Distancia-se de Hegel, entre outras coisas, ao eleger o homem concreto como sua prioridade e não a idéia de humanidade.

2. A Essência do Cristianismo
Em sua obra-prima, “A Essência do Cristianismo” , Feuerbach aborda o fenômeno religioso a partir do próprio homem.
“O homem se distingue do animal pela consciência.” Em outra passagem afirma: “Consciência é a característica de um ser perfeito”. O homem tem consciência de si através do objeto. Ou seja, o outro: o eu e o tu, na visão positivista.
A trindade humana - amor, razão e vontade - é a essência do próprio homem, é o homem completo:
- a força do pensamento é a luz do conhecimento, a razão;
- a força da vontade é a energia do caráter;
- a força do coração é o amor.
Querer, sentir e pensar são perfeições, essências, realidades... são infinitos, ilimitados. É ser consciente de si mesmo. É impossível, afirma Feuerbach nos remetendo à Descartes quando fala que Deus só pode ser um ser perfeitíssimo, ser consciente de uma perfeição como imperfeição; impossível sentir o sentimento como limitado, impossível pensar o pensamento como limitado.
Assim, o Ser Absoluto, o Deus do homem, é a sua própria essência. Feuerbach, já no início de sua obra, antropologiza a Trindade cristã em amor, razão e vontade, e que nada mais é do que a nossa própria essência. E a consciência disso é o que nos distingue dos animais. Amor, razão e vontade, essências do ser humano, são realidades ilimitadas, infinitas assim como Deus o é.
A antropologização segue seu curso em Feuerbach. O querer (a vontade) torna o homem infinito. O mesmo acontece com o sentir e o pensar que tornam o homem infinito e ilimitado, que são nossas construções de Deus. A consciência disso é autoconfirmação, auto-afirmação, que somos seres ilimitados e que projetamos tudo isso em Deus. Nossa educação cristã não permite que tomemos para nós adjetivos de tamanha grandeza. Não nos permite que possamos “conhecer mais que Deus” ou “se igualar a Deus”. Feuerbach, tornou-se maldito por ter ousado dizer que o temos de melhor, de mais sublime, enfim nossa essência, dizemos que é Deus. Ou seja, projetamos nossa essência em Deus e nos esquecemos que isto somos nós mesmos, nos anulando. Por outro lado, ele também afirma que isto é positivo, pois faz nos lembrar e ter consciência do melhor de nós mesmos.
Feuerbach continua na linha cartesiana: “o divino só pode ser conhecido pelo divino”. Isto quer dizer: se não tivéssemos o divino em nós, não poderíamos falar, exprimir ou experimentar o divino. E o divino não é razão, é sentimento: “a essência divina que o sentimento percebe é em verdade apenas a essência do sentimento arrebatada e encantada consigo mesma – o sentimento embriagado de amor e felicidade”. O autor constata que fez-se do sentimento a parte principal da religião, bem como a essência objetiva dela. “O sentimento é transformado num órgão do infinito, da essência subjetiva da religião, o objeto da mesma perde seu valor objetivo”. E no objeto religioso a consciência coincide com a consciência de si mesmo, o seu íntimo. Já num objeto sensorial, a consciência está fora, e no religioso, o objeto está dentro do próprio homem, sendo sua essência. Assim, amparado em Agostinho que diz que “Deus é mais próximo, mais íntimo e por isso, mais facilmente reconhecível que as coisas sensoriais e corporais”, Feuerbach resume sua visão antropológica da religião:
“A consciência de Deus é a consciência que o homem tem de si mesmo; o conhecimento de Deus é o conhecimento que o homem tem de si mesmo. Pelo Deus conheces o homem e vice-versa pelo homem conheces o seu Deus; ambos são a mesma coisa. [...] A religião é uma revelação solene das preciosidades ocultas do homem, a confissão dos seus mais íntimos pensamentos...”
Nesse sentido, a religião tornou-se, para Feuerbach, uma idolatria, pois o homem adora a sua própria essência: “os predicados divinos são qualidades da essência humana” e “na religião, o homem ao relacionar-se com Deus, relaciona-se com a sua própria essência”.
Feuerbach percebe a necessidade existente no homem da religião – “o sentimento religioso é o mais alto sentimento de conveniência” - uma vez que ela lhe serve como alívio frente às angústias, à dor e ao sofrimento da existência, que a natureza somente provoca e não alivia. O homem é dependente da natureza para existir. A natureza é sentida como necessidade, e é ai que surge a religião, opondo-se entre o querer e o poder, pensamento e o ser. Diante da natureza, o homem sente-se limitado, finito, já a religião teria a possibilidade da onipotência e da infinitude de Deus para oferecer ao homem. Os desejos do homem estariam assim representados enquanto possibilidade na figura de Deus, que é a representação imaginária da realização de todos os desejos humanos, superando os limites que a natureza lhe impõe. Deus domina a natureza, pois para o homem, ele é quem a cria. Assim sendo, Feuerbach desloca a divindade de um Deus externo ao homem para o interior do próprio homem. Ele é o Deus dele mesmo, e diz: "O Ser Absoluto, o Deus do homem é o próprio ser do homem." Deus é então a consciência que o homem tem de sí mesmo, de seu ser. A exemplo disto, a perfeição divina nada mais é do que o desejo do homem de ser perfeito e a consciência que tem de si, enquanto um ser imperfeito. O amor, a crença, o desejo, etc., atribuídos a Deus, que segundo Feuerbach, deveriam voltar-se para o próprio homem e para seu igual. Acredita que o homem deveria acreditar nele mesmo. No entanto, este filósofo aponta um erro na religião, que é a ilusão que ela cria. Ao mesmo tempo que oferece um sentido de vida para o homem e uma forma de ele lidar com suas limitações, a religião acaba por distânciá-lo dele mesmo, exteriorizando a própria divindade.

3. Conclusão
Como vimos, para Feuerbach, o homem é quem cria Deus e não o contrário. Segundo o autor, a filosofia precisa dar conta deste homem como um todo, e não somente da razão que o compõe. Deve abraçar a religião, enquanto fato humano, considerando este homem em comunhão com outros homens, caminho este através do qual ele pode sentir-se livre e infinito. O autor acredita que somente a religião dá conta do homem em sua totalidade. Feuerbach sugere que a religião desempenha um importante papel na vida do homem concreto. Para ele, a consciência que o homem tem de Deus é a consciência que o homem tem de si. Acredita que para se conhecer um homem, basta conhecer seu Deus, já que na sua concepção, a religião, o Deus do homem, nada mais é do que a projeção da intimidade da essência do homem. Assim sendo, para Feuerbach o método da teologia é a antropologia, pois o homem deposita em seu Deus a sua essência.
Em sua radicalidade, torna-se patente em Feuerbach que a religião e mesmo o estado são institutos irracionais a serviço da racionalidade, pois revestem-se de um caráter racional para induzir “vulgo” à submissão.

domingo, 10 de abril de 2011

As Igrejas Católicas Orientais são Igrejas particulares sui iuris em plena comunhão com o Papa, fazendo por isso parte da Igreja Católica. Elas conservam as seculares tradições litúrgicas e devocionais das várias igrejas orientais com as quais estão associadas historicamente. Enquanto divergências doutrinárias dividem as igrejas orientais não-católicas em grupos desprovidos de comunhão mútua, as Igrejas Católicas Orientais acham-se unidas umas com as outras bem como com a Igreja Católica de Rito Latino (sediada no Ocidente), conquanto se diversifiquem quanto à ênfase teológica, às formas da liturgia, à piedade popular, à disciplina canônica e à terminologia. Sobretudo, elas reconhecem a função central do Sumo Pontífice, sua suprema autoridade e sua infalibilidade magisterial. Apesar disso, as Igrejas orientais católicas têm uma autonomia considerável em relação ao Papa.

A maioria das Igrejas Católicas Orientais tem correspondentes entre as demais Igrejas orientais, quer assírias ou ortodoxas não-calcedonianas, quer ortodoxas orientais, que delas estão apartadas devido a certo número de dissonâncias teológicas, como também em virtude de discordâncias no que tange à autoridade do Sumo Pontífice.

Embora historicamente se situassem na Europa Oriental, no Oriente Médio asiático, na África do Norte e na Índia, as Igrejas Católicas Orientais, por causa da migração, estão hoje disseminadas também na Europa Ocidental, nas Américas e na Oceania, constituindo aí circunscrições eclesiásticas plenas (eparquias), ao lado das dioceses latinas.

Os termos greco-católico e católico bizantino referem-se àqueles que pertencem a Igrejas sui iuris que usam o rito bizantino. O termo católico oriental inclui-os também a eles, mas tem significação mais lata, de vez se aplica igualmente aos fiéis que seguem as tradições litúrgicas alexandrina, antioquena, armênia e caldéia.

Actualmente, estima-se que existem cerca de 16 milhões de católicos orientais, dos quais aproximadamente 7,65 milhões seguem a tradição bizantina.

O Grande Cisma do Oriente (1054), bem como os anteriores cismas a seguir ao Concílio de Éfeso (431) e ao Concílio de Calcedónia (451), criaram uma situação complexa para o mundo cristão. Um dos principais problemas do Cisma de 1054 era a questão da suprema autoridade da Santa Sé (sediada em Roma) sobre as demais Igrejas patriarcais do Oriente (Alexandria, Jerusalém, Antioquia e Constantinopla). Discordando sobre os poderes e privilégios da primazia papal, praticamente todas as Igrejas Orientais quebraram a comunhão com a Igreja Católica. Por isso, a grande maioria das actuais Igrejas orientais católicas são o resultado dos esforços e do desejo de certos cristãos orientais (ortodoxos, não-calcedonianos e nestorianos) de voltarem a estar em comunhão com a Santa Sé. Esta reunião pode ser espontânea ou por causa do trabalho de missionários católicos.

As Igrejas orientais católicas, devido, como por exemplo, aos seus diferentes tamanhos e às suas diferentes particularidades histórico-geográficas, têm uma organização e estrutura um pouco diferentes entre si.

Em geral, estas Igrejas são governadas por um hierarca e o seu respectivo Sínodo ou Concílio de Hierarcas (que é chamado também de Concílios Eclesiásticos , que têm por função tomar decisões conjuntamente com o seu hierarca.

decreto "Orientalium ecclesiarum", que foi aprovado no dia 21 de Novembro de 1964 pelo Concílio do Vaticano II, aborda a questão das Igrejas orientais católicas. Este documento conciliar afirma que, "na única Igreja de Cristo" (que subsiste na Igreja Católica), as Igrejas Latina e Orientais "...desfrutam de igual dignidade... nenhuma prevalece sobre a outra... são confiadas ao governo pastoral do Pontífice Romano". O decreto defende também que estas Igrejas orientais podem e devem salvaguardar, conservar e restaurar o seu rico património espiritual, nomeadamente ritual, através, como por exemplo, da celebração dos seus próprios ritos litúrgicos orientais e das suas práticas rituais antigas.

O documento salienta também o carácter autónomo das Igrejas orientais católicas, especificando os seus vários poderes e privilégios. Em particular, como por exemplo, afirma que os Patriarcas Orientais, "com os seus sínodos, constituem a instância suprema para todos os assuntos do Patriarcado, não excluído o direito de constituir novas eparquias e de nomear Bispos do seu rito dentro dos limites do território patriarcal, salvo o direito inalienável do Romano Pontífice de intervir em cada caso. O que foi dito dos Patriarcas vale também, de acordo com as normas do direito, para os Arcebispos maiores, que presidem a toda uma Igreja particular ou rito sui juris" . Mas, é preciso também salientar o facto de nem todas as Igrejas orientais serem Patriarcados ou Arquidioceses maiores.

Tendo em consideração à diferente situação histórica vivida pelas Igrejas orientais, "a legislação da Igreja Oriental em matéria de disciplina celibatária para o clero" é também por isso diferente à da Igreja Latina , que exige o celibato ao seu clero (exceptuando os diáconos). Nas Igrejas orientais, o celibato é apenas obrigatório para os bispos, que são escolhidos entre os sacerdotes celibatários. Logo, existem sacerdotes casados nas Igrejas orientais. Mas, é proibido aos sacerdotes solteiros contrairem "matrimónio depois da ordenação". Isto quer dizer que eles só podem casar antes de se ordenarem, ou seja, antes de se tornarem sacerdotes. Esta prática oriental "foi finalmente estabelecido no Concílio de Constantinopla In Trullo do ano 692 e abertamente reconhecido pelo Concílio Ecumênico Vaticano II".

A Igreja Católica "considera iguais em direito e dignidade todos os ritos [litúrgicos] legitimamente reconhecidos e quer que no futuro se mantenham e sejam promovidos por todos os meios" . Sendo assim, as principais "tradições litúrgicas ou ritos, actualmente uso na Igreja, são: o rito latino (principalmente o rito romano, mas também os ritos de certas igrejas locais, como o rito ambrosiano ou o de certas ordens religiosas)" e os ritos orientais ("os ritos bizantino, alexandrino ou copta, siríaco, arménio, maronita e caldeu") .

Aqui estão as 22 Igrejas orientais católicas sui juris, as suas respectivas tradições litúrgicas orientais e a sua respectiva data (ou suposta data) de fundação (ou seja, de comunhão com a Santa Sé). Esta lista baseia-se no Anuário Pontifício da Santa Sé (a edição de 2007 desta publicação anual tem ISBN 978-88-209-7908-9).

sábado, 2 de abril de 2011

O medo: uma análise de Jean Delumeau

Jean Delumeau, autor de “O medo no Ocidente”, é um dos mais importantes historiadores em atividade hoje. Professor do Collège de France, Delumeau afirma que a civilização só cresceu quando superou seus medos. Hoje, disse, o medo americano do terrorismo torna-se um perigo para o planeta, na medida em que não leva em conta a análise objetiva dos problemas que a realidade pós-11 de Setembro levantou. Muitos de seus livros foram publicados no Brasil, como “O pecado e o medo”, obra em dois volumes editada pela Edusc; “O que sobrou do paraíso” e “Mil anos de felicidade — Uma história do paraíso”, ambos editados pela Companhia das Letras, e “De religiões e homens” (Loyola).

A retórica simplista dos EUA sobre o medo reedita manipulações do mesmo tipo em outras épocas? Deve-se temer o grande medo americano?

JEAN DELUMEAU: O medo faz parte da condição humana. Todos os medos levam ao medo da morte. E estamos todos submetidos à morte. Mas os medos mudam no tempo e no espaço em função dos perigos que se apresentam à Humanidade. Não podemos raciocinar sobre o medo sem levar em conta a necessidade de segurança, fundamental ao ser vivo. Tratando-se do perigo terrorista que faz tremer os EUA e outros países desde o 11 de Setembro, é impossível considerá-lo imaginário. Ele existe, mas pode virar meio de manipulação como foram no passado outras ameaças. Quando tais apreensões engendram a mentalidade da “cidade sitiada”, elas derivam para procedimentos inquisitoriais ou guerras preventivas. O medo, lúcido no início, torna-se um perigo. Impede identificar as causas de uma situação de fato inquietante que não tratamos com os verdadeiros remédios. Quanto à situação do Ocidente face ao perigo islâmico, a guerra do Iraque foi uma resposta não apropriada que agravou a situação, por não levar em conta uma análise objetiva dos problemas. O medo americano do terrorismo torna-se um perigo para todo o planeta.

Compreender o poder é exercício de compreensão dos medos que ele manipula, como o medo do desemprego?

DELUMEAU: Todas as civilizações, incluindo a nossa, desenvolveram-se fazendo recuar o medo e, portanto, com vitórias sobre o medo. Os progressos técnicos permitiram combater as doenças, aumentar a produção agrícola, melhorar as condições de vida. Os progressos do direito reforçaram nossas liberdades individuais e nossa proteção pessoal. Os tratados internacionais fizeram desaparecer a guerra entre países como França e Alemanha. Governar consiste em prever perigos que provocam medos, como o desemprego.

O medo é diferente no Oriente?

DELUMEAU: Os ocidentais são mais individualistas e menos fatalistas que os não-ocidentais. Mais sujeitos a medos ou mais frágeis diante deles. Somos mais apegados aos bens terrestres que a maioria dos não-ocidentais.

O senhor fala de “derrapagens” ao extremismo. Estamos vendo isso? Fundamentalismo é reação ao medo?

DELUMEAU: Todo fundamentalismo é reação de medo: apegamo-nos a uma doutrina simplista como se fosse uma bóia. Dá-nos segurança e responde a uma necessidade maior do homem. No fundamentalismo islâmico identificamos o medo de o Islã se desintegrar sob a força, mesmo não-violenta, do Ocidente. Formas de vida condenadas pelo Alcorão, a leitura crítica deste, a separação entre religião e política são percebidas como uma ameaça à identidade muçulmana, mais concebida e vivida de maneira coletiva que de modo pessoal. O fundamentalismo opõe ao mundo moderno a barreira de um texto tido como sagrado, intangível e além de qualquer discussão. O fundamentalismo conduz a “derrapagens” mais extremas. Nenhuma outra verdade é aceita fora do que se afirma pela autoridade.

É o risco de haver, portanto, uma derrapagem ao terror...

DELUMEAU: É uma realidade, já observada antes. No século XVI, na Europa, o medo da heresia levou à criação de legislações de exceção contra os protestantes nos países católicos e contra os católicos nos países protestantes. Na França de 1793, a mentalidade da cidade sitiada desembocou na Convenção e no terror. Todo sistema totalitário tem vocação terrorista.

O que dizer do homem-bomba, que não teme morrer?

DELUMEAU: Ele supera mais facilmente o medo devido à força de sua convicção e da crença numa recompensa no além, prometida a mártires. A irrupção desses kamikazes transtornou a concepção de guerra que se queria fundada em tecnologias mais sofisticadas.

O senhor diz que o sentimento de insegurança é muitas vezes maior que a insegurança real...

DELUMEAU: Isso nos faz constatar que os ocidentais hoje são menos resignados e fatalistas que seus ancestrais e menos que outros habitantes do mundo. No Ocidente, nos séculos XVI e XVII, a insegurança cotidiana era grande.

As religiões se multiplicam. O medo cristão faz parte do passado?

DELUMEAU: Apesar do quase desaparecimento da “pastoral do medo” — não se convertem mais as massas agitando o espantalho do inferno — assistimos à renovação das manifestações religiosas. É a prova de que a pastoral traumatizante não era necessária para ganhar as almas do cristianismo. O medo de Deus perdeu terreno, mas a necessidade de se dirigir à bondade protetora de Deus permanece e mesmo cresce. Por quê? Porque compreendemos melhor que há 50 anos que os progressos técnicos não levarão à salvação: nem aqui, nem no além. Pedir a ajuda divina é tomar consciência de suas fraquezas e insuficiências. Não existe sentimento religioso sem esta necessária humilhação.

Em que momento da História o homem sentiu mais medo?

DELUMEAU: O medo culminou no século XX, com massacres em guerras, genocídios, ditaduras de direita e esquerda. Que possamos não continuar nesse caminho no século que começa!

Fonte: http://www.usc.br/Edusc/noticias/14_08_04_pecadomedo_oglobo.htm